sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Política Possível de Tanovic

11 de setembro, produção franco-britânica idealizada por Alain Brigand,  é um filme político. Ou mesmo antes disso, uma ação política. A obviedade da primeira afirmação talvez possa ser questionada pela abrangência da segunda. Um filme que reúne 11 curtas de durações exatas – 11 minutos 9 segundos e 1 frame - uma referencia à data do título, 11/09/01, cujo elo principal de ligação são os atentados às torres gêmeas do World Trade Centre nos estados unidos teria alguma chance de não ser político? Há quem diga, não conheço mas há de haver, que todo filme é necessariamente político. Nesse caso especificamente parece difícil de imaginar o contrário. Mas, e enfim, explico a aparição não tão obvia assim da afirmação primeira.
  O cinema americano, e mais especificamente o cinema da indústria cinematográfica americana, assume ou tem um gosto especial por seus embates e afagos com o resto do mundo. E aqui me permitam essa dualidade, já que assim se porta parte considerável de sua cinematografia. São inúmeros os filmes que abordam o mal soviético no período da guerra fria, outros tantos sobre a presença norte americana em guerras – Vietnam, Iraque - e mais recentemente muitos que contrapõe à civilidade do império os bárbaros terroristas. O que esperaríamos então de um filme que reúne onze cineastas para produção de curtas – formato já utilizado com outros propósitos - em torno de um fato tão delicado para os americanos?

Caso esse fosse um produto da indústria americana provavelmente sairíamos da sessão, depois de alguma indignação e muito choro, certos de que nós - nós? – cidadãos ocidentais civilizados jamais iremos sucumbir aos desvarios do terrorismo. Mesmo esse desenho simplório de abordagem da questão não tiraria do filme seu caráter político. Porem essa não é uma produção típica dos grandes estúdios yankees e reúne cineastas  não apenas de lugares variados do mundo mas que expressam forte teor crítico em suas obras. O caráter político do filme, então, se complexifica, mesmo que não haja propriamente em nenhum dos curtas que o compõe uma crítica direta ou qualquer tipo de hostilidade às muitas ações condenáveis dos Estados Unidos. Mesmo assim o filme foi rejeitado por parte da crítica e do público norte americanos, que o acusaram senão de pouco sensível ao horror dos atentados, de ser conivente com eles. Fato que possivelmente atesta a complexidade política afirmada acima.
O curta metragem do cineasta bósnio Danis Tanovic certamente não é ofensivo aos norte americanos, mas possivelmente não aborda o atentando do 11 de setembro nos padrões que gostaria o publico que tem como principal ou mesmo único item do cardápio de filmes as produções da indústria cinematográfica.
Tanovic, em seus pouco mais de 11 minutos de filme, faz uma aproximação entre o sofrimento de seus conterrâneos e o dos norte americanos. Tal paralelo é construído aos poucos ao longo do filme, que nos apresenta gradualmente informações que criam ao final uma cumplicidade entre os dois povos, que fora desse contexto seriam tidos como opostos, entre oprimidos e opressores. A singeleza do filme beira ser piegas, e seu curto tempo não favorece à narrativa dar densidade dramática à protagonista e à trama, mas, por outro lado, dá conta de coloca num mesmo patamar experiência tão díspares no tabuleiro dos conflitos internacionais.
Seguindo a linha narrativa do filme, somos apresentado na primeira sequência a personagem principal e sua angustia diante da chegada do dia 11, compassada pelos ponteiros de um relógio de parede. Algo está para a acontecer... Essa expectativa criada é interessante por que sabemos, nós espectadores, o que irá acontecer naquele dia 11, mas não sabemos o motivo que causa a insônia da personagem. Teria ela poderes de vidência? A sequência termina com um plano do relógio seguindo seu compasso e ao lado um retrato de família.
Na sequência seguinte mais informações, Hanka, mãe de Selma, personagem principal e que inicia o filme, informa a um visitante, Nedim, que Selma não se encontra, que teria não dormido de noite e que isso se repetia todo dia 11. Algo já aconteceu! E é esse algo que vai sendo aos poucos revelado pelas pequenas e determinantes informações sobre e através de Selma.
A memória e sofrimento das personagens em torno do dia 11 é por conta do Massacre de Srebrenica. Uma ação da Servia em pleno conflito com a Bósnia Herzegovina, que matou naquela cidade cerca de 8 mil homens em cinco dias de genocídio. A cidade naquele momento servia de refúgio para muçulmanos bósnios que fugiam do conflito e foram sitiados e mortos em Srebrenica em julho de 1995.
O quadro desenhado por Lanovic é o emblema do que aconteceu depois. Mãe e filha, duas sobreviventes dos quatro que compunham a família mostrada na foto da sequência inicial, refugiadas em algum outro lugar – não há essa localização no filme – que sonham em voltar para casa. Na verdade Selma ainda sonha, seis anos já se passaram, Hanka já desacredita dessa possibilidade.  
A inserção dos atentados de 11 de setembro de 2001 se dá no momento final, em que Selma, já munida de seus cartazes de protesto cuja procura deles é sua ação condutora até então, chega à associação das mulheres de Srebrenica e sabe do ocorrido. Isso aparentemente desmobilizaria a ação de protesto das mulheres sobreviventes do massacre, ao que Selma estimulada por seu amigo Nedim – único homem do filme, também sobrevivente e que anda numa cadeira de rodas – retoma a marcha reafirmando a necessidade daquela ação, com motivos ainda mais fortes justamente por conta dos atentados.
Não há imagens do World Trade Centre. Todo o ponto de vista se dá através do percurso, absolutamente restrito mas não inerte, de Selma diante de uma condição que de tão adversa, diria mesmo opressora, é capaz de gerar solidariedade ao povo de um país associado direta ou indiretamente aos conflitos contemporâneos, e sempre na posição de, ou aliado ao opressor.
 O filme de Lenovic é íntegro em sua perspectiva política e na possibilidade de abordagem do tema. Ao invés de tratar diretamente dos atentados de 11 de setembro, o integra historicamente num contexto de outros atentados tão ou mais cruéis e devastadores que o ocorrido em Nova Iorque. Na guerra todos perdem, ou quase todos. E os polos do conflito – que não são postos em oposição direta nesse caso específico – podem se diluir com os horrores que ele gera.
Mesmo que a característica do 11 de setembro seja a da diversidade de olhares sobre o atentado, cada um deles pode ser um emblema dessa ação fílmica e política. Cada qual fala de suas dores e as aproxima de forma crítica e/ou solidária aos norte americanos. Eis a complexidade que transforma o filme em ação política. Uma abertura de abordagem muito mais rica certamente do que um lamento e reafirmação dos tão publicizados e problematizados valores do way of life.  Não seria diferente, ao reunir cineastas como Makhmalbaf, Iñarritu, Imamura, Tanovic sob a possibilidade, anunciada na cartela inicial e emblema da democracia norte americana, de liberdade de expressão. Não entendo por que eles não gostaram do filme...

terça-feira, 25 de maio de 2010

Sobre Acaso e Documentário - semi final


Essa é a capa do CD, feita por Tenille Bezerra, com a versão semi final de minha dissertação de mestrado. Foi entregue ontem, dia 24.05. A defesa será dia 28.06. Tenho mais alguns dias para complementar os capítulos e as análises dos filmes Santiago, de João Salles, O Fim e O Princípio, de Coutinho, e Aboio, de Marília Rocha. publico aqui parte da apresentacão. Para quem tiver interesse, em breve todo o texto deve estar postado no site da Pós Com Facom-UFBA. a imagens é uma referencia ao filme Um Homem com uma Câmera, do cineasta Dziga Vertov.


1. Introdução

1.1 O ACASO E SUAS EMERGENCIAS NO CINEMA DOCUMENTÁRIO

Pensar o acaso no filme documentário implica uma diferenciação que possivelmente permeia as principais questões desse gênero do cinema. Por um lado temos nossa experiência real, comum. A forma como compartilhamos e concebemos a realidade, e no caso específico do interesse dessa pesquisa, como entendemos e diferenciamos essa esfera em que nos constituímos e construímos ao mesmo tempo, de forma direta, imediata, e a experiência de sermos convocados à fruição de uma obra que é construída a partir dessa mesma realidade. O acaso na vida parece óbvio, no filme nem tanto.

Porém, ao longo da história do cinema documentário valores que estão associados à realidade, como a casualidade, a espontaneidade, imprevisibilidade, indeterminação e autenticidade, que aqui estão sob a idéia genérica de acaso, serão projetados enquanto valores na forma de pensar e fazer os filmes assim identificados. Vertov, Flaherty, Grierson, Rouch, Drew, entre outros, se posicionaram em diferentes momentos sobre as formas de representação do real, seu alcance, suas limitações, sua natureza. E em diferentes graus é possível localizar a importância do dialogo com esses valores associados à realidade que de alguma forma são projetados nas obras.

Na atualidade não é raro lermos ou ouvirmos cineastas e teóricos se referirem ao desconhecimento do resultado que um filme pode ter, justamente pela valorização, no discurso ao menos, de modos de composição susceptíveis às instabilidades de contextos e personagens reais. Aqui também se faz necessário uma diferenciação. O acaso pode estar, e talvez sempre esteja em um processo de produção de filme documentário. Talvez não devamos nem mesmo restringi-lo à esfera apenas do documentário, ou mesmo do cinema. Mas, se assumirmos a obra enquanto entidade autônoma, que em si traz o estímulo suficiente para sua apreciação e análise, como compor e/ou identificar elementos atribuídos à experiência imediata em um produto proveniente do que lhe parece oposto? Resultado de uma composição, do manuseio e combinação de elementos para funções e efeitos intencionais.

A presente pesquisa parte da constatação do apelo que é feito às imprevisibilidades do real em concepções do cinema documentário, e busca problematizá-las assumindo a obra como inicio e fim de suas possibilidades. Um pressuposto implícito a essa postura é o direcionamento do olhar para o filme documentário enquanto obra artística. Tal gênero, por diversos motivos que vão desde sua abrangência, seu caráter de representação da realidade, suas intercessões com a antropologia, com o jornalismo, com as artes plásticas, traz consigo um volume grande de abordagens que ora o especifica como fruto de um saber histórico, factual, que atribui uma função informativa, uma responsabilidade social, ora desacredita de uma especificidade possível e afirma que tudo é ficção. A identificação do valor do acaso no cinema documentário, sob a perspectiva dos modos de composição, não se situa necessariamente em nenhum desses pólos extremos. Tal perspectiva assume como possibilidade de análise do filme documentário não o que é dito ou mostrado, mas como é mostrado, como são agenciados os elementos sensíveis na composição de uma obra de expressão própria. Para tanto foi necessário estabelecer um diálogo entre a tradição teórica do gênero com outros campos do conhecimento ainda poucos aplicados a ele para buscar novas formas de compreensão dos filmes e contextos abordados. O acaso, como é entendido nesse trabalho, assumiu diferentes contornos na história do documentário. Vertov, na década de 1920 já apontava para esse aspecto ao afirmar que seu cinema buscava mostrar “a vida como ela é”, a “vida de improviso”. Flaherty, Grieson e os cineastas que compuseram o grupo de produção britânica do final da década de vinte e boa parte de década de trinta, entre eles o cineasta brasileiro Alberti Cavalcanti, apesar de serem responsáveis pela institucionalização de um padrão que minimizava o acaso afirmavam uma função pedagógica pela realidade que era mostrado no filme. Na década de 1960 teremos a emergência de alguns grupos de cineastas que vão marcar uma virada estilística no documentário. Os grupos, reunidos em dois principais movimentos, o Cinema Direto e o Cinema Verdade, vão munidos de novos equipamentos de captação de áudio sincrônico e câmeras mais leves de 16mm experimentar diferentes modos de se inserir, captar e compor filmes a partir de valores que ressaltam por um lado a espontaneidade e autenticidade, por outro a construção conjunta e declarada de uma realidade expressa nos filmes. Nesse momento teremos mais claramente a presença de elementos do acaso nos filmes, a partir de utilização de mecanismos que veremos mais detidamente no segundo capítulo dessa pesquisa.

Atualmente, com um grau maior de complexidade e ainda mais abrangente em modos de representação o documentário apresenta formas variadas de construção de elementos que investem numa abertura do processo de composição para os estímulos imprevistos dos contextos e personagens reais abordados e que estão presentes nos filmes também de forma variada.

O esforço maior desse estudo foi o de buscar através da perspectiva de análise interna da obra compreender a presença dos valores associados ao acaso: espontaneidade, imprevisibilidade, indeterminação, autenticidade; no corpo da obra, potencializando um olhar contextual a partir dos impulsos artísticos e de programas poéticos. Para tanto foi traçado três linhas de abordagem, interligadas, que foram estruturadas da seguinte forma: problematização e escolha de chaves analíticas para o cinema documentário; contextualização histórica do apelo e da presença efetiva do acaso nos filmes; e a aplicação dessa perspectiva de análise em filmes atuais do cinema documentário, distintos em suas propostas de realização, mas que mostram a intenção de expor esses valores materializados no corpo da obra.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Santiago: um filme sobre o filme, sobre mim, sobre ele


Esse é um trecho da primeira análise que fiz do Santiago, de João Moreira Salles. Filme que faz parte de meu corpus de análise do mestrado em cinema.

9 minutos...

O filme Santiago começa com três planos em zoom in de três fotografias em diferentes cômodos vazios de uma casa. As imagens, em preto e branco, são acompanhadas por uma composição erudita executada por um piano solo. Ao final do terceiro plano ouvimos a voz do narrador dizer que aquelas eram as imagens que dariam início ao filme que não foi concluído treze anos antes do atual. Seguimos a narração com planos que adentram uma enorme casa vazia. A voz nos diz que aquela era a casa da infância do próprio narrador, que lembra, dentre outras coisas, que brincava de servir os convidados da família imitando os garçons das grandes festas que vivenciara. Quem o ensinava a equilibrar a bandeja, nessas ocasiões, era Santiago, o mordomo. A narração encerra sua primeira presença dizendo, sobre Santiago: “o filme que eu tentei fazer, há treze anos, era sobre ele”. O plano seguinte é a imagem da porta de ferro trançado de um elevador antigo que deixa à mostra as portas de cada andar por onde passa. A narração reaparece apresentando mais informações sobre a personagem principal e sua atual situação. Aposentado, após trabalhar com a família do cineasta por 30 anos, morando sozinho, aos 80 anos de idade, num apartamento no bairro do Leblon, Rio de Janeiro. O narrador nos fala da data da gravação e de quem o acompanhava na gravação, e antes de mostrar o que anuncia, diz: “Este é o primeiro plano do filme”. O que se segue é uma tela preta, sem imagens, com os sons da conversa entre Santiago, o diretor, sua assistente e a equipe de filmagem, preparando o inicio das gravações. Um dado importante, que só perceberemos mais tarde sua importância no filme, é a voz de Santiago sugerindo iniciar sua fala dizendo: com esto pequeno depoimento que irei a fazer com todo carinho, não se pode começar assim?”, e sendo interrompido pela direção que o reconduz aos seus propósitos de apresentação da cozinha onde está. Em dado momento, acompanhando o comando de iniciar a gravação da câmera, vemos uma claquete marcando o primeiro plano, e Santiago sentado ao fundo, numa cozinha. A assistente o dirige e pede para que ele descreva o espaço, e então a personagem inicia sua fala pró fílmica. O plano segue sem interrupções de corte, expondo a personagem respondendo as perguntas da assistente. Ele fala de sua máquina de escrever, sua “velha metralhadora”, através da qual ele registra há quarenta anos seus “abortos mentales”, elemento que também será de grande importância no filme.

O momento seguinte é composto por cenas das páginas do roteiro original do filme acompanhados pelo narrador, que descreve seus métodos. Ao descrevê-los, imagens feitas a partir do imaginário da personagem Santiago, são intercaladas às cenas que enquadram em primeiríssimo plano as palavras do texto do diretor na organização do filme que não foi concluído. Essa construção nos conduz para a apresentação da única sequência montada que restou do projeto original, nela voltamos ao relato de Santiago entrecortado por cenas de um trem de ferro surgindo de um nevoeiro, e um lutador de boxe. Vemos nas bordas do quadro os números do timecode de cada plano utilizado na montagem. A sequência é encerrada com a voz do narrador nos dizendo que parou a edição do filme por achar que as idéias dele funcionavam no papel, não na tela do cinema. Ao concluir a insuficiência de seu material numa ilha de edição vemos a porta do elevador se fechar e iniciar sua descida. A voz então faz as considerações finais de apresentação da personagem e do filme: “Santiago morreu pouco depois dessas filmagens, dele restaram trinta mil páginas e nove horas de material filmado, além de minha memória e da memória dos meus irmãos”. Depois de um corte vemos a imagem da primeira foto em zoom in do inicio do filme. É a foto da entrada da casa vazia que já fomos apresentados anteriormente. Depois de uma breve pausa a narração enfim conclui seu movimento inicial de nos inserir no filme: passei treze anos sem mexer nessas imagens, em agosto de 2005 decidir tentar de novo, era um modo de voltar à casa de minha infância e a Santiago.

Principais linhas transversais

A primeira coisa que chama a atenção em Santiago é a escolha pela imagem em preto e branco. Nessa breve introdução não temos qualquer informação sobre isso. Mas certamente nos coloca num lugar de apreciação já diferenciado se considerarmos que atualmente, e mesmo no período da filmagem, há treze anos da produção atual, os filmes em sua grande maioria eram feitos em cores. E, sendo o documentário uma representação da realidade, supõem-se então que havendo escolha opta-se prioritariamente por imagens coloridas, já que é assim nossa visão. O fato de termos imagens em preto em branco ressalta seu caráter estético, uma escolha deliberada que deve ter motivações na composição do filme. Por que, então, a imagem em preto e branco não nos causa estranhamento em Santiago? Para essa pergunta não há respostas tão claras. Em dado momento, muito mais adiante, o narrador comenta seus enquadramentos e os atribui à influência que teve do filme Viagem a Tóqui, do cineasta japonês Yasujiro Ozu, cujas imagens também são em preto e branco. Mas não só ele, o narrador, não fala sobre a cor das imagens como essa referencia é atribuída ao enquadramento e não justificaria a escolha por si só. Pode-se inferir talvez, conhecendo melhor a personagem que dá titulo ao filme, que sua memória e imaginação, que nos remete aos muitos séculos da aristocracia de todo o mundo, ao mesmo tempo em que comenta os anos vividos junto à família do documentarista não possam ser melhor representados de outra forma. A ambiência que nos é criada pelas muitas histórias narradas por Santiago é de um tempo remoto. Mesmo o que aconteceu há poucas décadas em seu relato ganha ares de um outro tempo, distante do atual. As únicas imagens coloridas do filme são, além de uma sequência filme A Roda da Fortuna(1953), cenas dos pais, dos irmãos e do próprio narrador, ainda criança, brincando na piscina da casa. Registro de família, que posto nesse contexto também parece mais recente do que as produzidas para o filme décadas depois. Um indício dessa escolha pode estar nas palavras do narrador ao comentar que: sua imaginação o levava a um mundo mais antigo, e menos moderno...

O elemento preponderante do filme que também se anuncia desde o inicio é a narração. Esse elemento é comumente utilizado no cinema documentário de forma impessoal, em terceira pessoa, para informar o expectador sobre o que esta sendo mostrado. Muitas vezes reduz a imagem a uma função de comprovar o texto, que associado a ela parece quase sempre uma redundância desnecessária. Em Santiago o narrador não só é inevitável como é o principal responsável por abrir os diferentes pontos de abordagem que emergem da recomposição de um material bruto guardado por treze anos.

No início do terceiro plano, que nos mostra a terceira foto em zoom in o narrador inicia sua fala nos dizendo que assim começaria o filme rodado há tantos anos. Logo em seguida nos fala que a casa que é filmada vazia pertenceu a sua família e foi onde viveu durante a infância e adolescência, para depois chegar a Santiago. Um movimento rápido que apresenta de forma sutil as três principais vertentes que serão desenvolvidas no filme.

O narrador em Santiago se apresenta em primeira pessoa. Fala de si, de Santiago e do filme que tentou fazer e não concluiu. Ele traz características de reflexividade, principalmente, com tons autobiográficos, alem de falar sobre seu personagem, não de forma redundante, mas analítica.

Partindo do caráter reflexivo da narração, Santiago, o filme, nos apresenta o material bruto retrabalhando para a avaliação das escolhas e da forma de dirigir que João Salles adotou naquele momento. Ele expõe os sons de preparação da gravação do primeiro plano. Como citei anteriormente, ouvimos Santiago sugerindo começar a fala de uma forma, e sendo cortado pela assistente de direção, já apresentada no filme, reconduzindo-o aos propósitos preestabelecidos daquela cena. Esse plano, sem imagens em seu inicio, não está ali por acaso, ele mostra desde já o embate que se estabelece durante todo o filme entre a tentativa de se expressar da personagem, ou o que espontaneamente ele gostaria de falar, e o que o diretor do filme julgava ser importante no momento. Ao se debruçar sobre o material bruto, João Moreira Salles comenta em diversos momentos como deixou de perceber que a riqueza de seu filme estava justamente no que Santiago achava importante dizer sobre si. O que espontaneamente poderia vir dele na circunstancia de ser estimulado por uma câmera. A partir dessa experiência o diretor, através da narração, vai construir uma abordagem sobre o papel da direção no documentário, e o caráter das imagens que o compõem. Sua perspectiva não é a de quem defende uma posição no embate sobre quão construída e própria é a realidade do filme documentário. Ele problematiza tanto sua insensibilidade ao não dialogar com Santiago sobre o filme, dando vazão as sugestões de sua personagem, quanto da composição dos cenários para as filmagens. Num dado momento, afirma que “reassistindo o material bruto fica claro que tudo deve ser visto com uma certa desconfiança”, em outro diz não ter sido capaz de entender o que realmente Santiago procurava te dizer com as muitas tentativas de expressar o que queria durante as filmagens. Considerando esse aspecto de composição formal, Santiago é uma oficina de desconstrução de um filme. Tudo é mostrado. Tudo que certamente não estaria em sua primeira montagem caso chegasse a terminá-la. O plano de apresentação da personagem nos revela essa característica desde o inicio. E veremos ao longo de todo o filme sequências com repetições sem contes, a voz dos diretores conduzindo a personagem, a personagem indagando os diretores se estava representando bem, claquete, áudio sem imagens; sempre conduzidos pela narração, que tece esses elementos de analise como estratégias de composição de um filme que fala de si alem das personagens.

“O filme que eu tentei fazer, há treze anos, era sobre ele”. Se pensarmos bem sobre essa frase também chegaremos a uma síntese de Santiago. O filme não concluído era sobre ele. O filme concluído é sobre quem, ou o que? Santiago não deixa de ser sobre o mordomo da família, mas passa a ser também sobre o próprio cineasta e a construção do filme que agora é levado a termo.

As personagens

Santiago, o mordomo, é um argentino com ascendência italiana que demonstra erudição, fala diversas línguas, toca piano e castanholas, cita diversos livros, pinturas, óperas, concertos, e acima de tudo, escreve sobre a história da aristocracia universal de todos os tempos. Algo megalomaníaco, que o narrador nos revela com admiração e respeito, deixando subentendida que essas histórias, escritas em trinta mil páginas por Santiago, são em grande parte fruto de sua imaginação fabulosa. Santiago é uma personagem forte, que vivenciou contextos restritos de uma família aos moldes aristocráticos e significou sua passagem através das fabulas que conheceu e que inventou. O narrador do filme se relaciona com ele de forma solene, buscando entender através da memória e das imagens filmadas os labirintos da personagem. E a partir desse dialogo fala de si, e de sua família. Essa relação de intimidade é dosada pelo viés analítico assumido pelo narrador ao comentar suas escolhas para a realização do filme, e pela busca de compreensão de sua personagem. O modo de construção e apresentação de cada personagem é permeado pela presença das outras a ponto de criar uma interdependência que justifica e fortalece a motivação do filme que enfim chega a termo. O universo aristocrático de Santiago está relacionado à casa da Gávea, onde trabalhou e viveu durante trinta anos, parte deles com a presença do então documentarista, João Moreira Salles, filho do dono. João, enquanto documentarista, muito anos depois de todos terem deixado a casa, filma Santiago para um filme que não conclui, e ao retomar o projeto 13 anos depois, se depara não apenas com sua personagem Santiago e a casa da Gávea, mas com sua própria postura à frente da direção de um projeto, que expõe muito da intimidade de sua família.

A relação que é exposta no filme entre o diretor e a personagem chama atenção por seus contrastes. A condução das cenas e entrevistas e a subserviência de Santiago mostram algo que o narrador vai concluir ser uma insuperável relação hierárquica entre o mordomo e o filho do dono da casa. Não se estabeleceu um diálogo entre documentarista e personagem, mas sim entre patrão e empregado, que segundo análise do narrador é expressa não apenas na forma como Santiago é cortado em suas tentativas de fala espontânea e reconduzido a encenar a determinação do diretor, mas também pela escolha distanciada de composição dos quadros, inspirados nos “enquadramentos severos” do cineasta japonês Ozu. Por outro lado, a forma como o diretor se reporta a sua personagem agora, o cuidado na análise de sua expressão, a utilização de suas referências musicais e fílmicas na construção do filme, o respeito com seu universo particular é evidenciado na forma solene como o próprio filme é construído.

Essa característica do filme está expressa em como o narrador apresenta e analisa o que vemos. A casa presente no filme é de sua família, onde ele e os irmãos viveram a infância e adolescência. Santiago nos é apresentado por seu olhar intimo, de quem conviveu muitos anos e pode falar dele ao relatar suas lembranças. Um momento claro dessa relação é mostrado logo após os nove minutos iniciais. O narrador recorda uma historia que é compartilhada por ele e Santiago. Ele nos diz: “Me lembro que certo dia, meus pais saíram e disseram a Santiago que iam jantar fora, que ele podia fechar a casa e se recolher. Eu era menino, dormia cedo. Por volta da meia noite, acordei com uma música. Percebi que alguém tocava o piano que ficava no início dessa galeria, que agora me dou conta, talvez devesse ter filmado à noite. Me levantei. Na ponta dos pés fui até lá. A casa estava escura. Quando cheguei no salão, vi que era Santiago. Ele usava um fraque que vestia nos dias de grandes festas. Não me espantei com a música. Não era raro ver Santiago ao piano. Me espantei com o fraque. Perguntei: por que essa roupa, Santiago? E ele respondeu apenas: por que é Beethoven, meu filho”­.

A sequência começa com planos fixos de detalhes internos da casa. Inicia-se um travelling no momento em que o narrador nos indica a galeria onde ficava o piano, e ao chegar ao local de sua descoberta a tela fica preta e ouvimos apenas a narração reproduzir a resposta de Santiago. Nesse trecho o narrador nos conta algo de sua infância cujo personagem principal é o mordomo, analisando a postura dele em se portar daquela maneira. Ao fim da sequência, como uma transição para retornarmos ao apartamento do mordomo, o narrador comenta a lembrança, se questionando se esse relato estaria no filme que não foi concluído. Avalia que talvez estivesse por achar naquele momento que se tratava de uma historia que dizia respeito apenas ao mordomo, mas que agora a insere no filme por saber que ela diz respeito também a ele. Uma mesma cena que possivelmente estaria em dois filmes distintos, com propósitos também distintos.

João Moreira Salles está presente no filme de duas maneiras. Enquanto documentarista, que retrabalha filmagens de um antigo projeto inconcluso e analisa sua concepção ao idealizar e dirigir tal projeto. E como testemunha da personagem que nomeia o filme que agora conclui. A análise sobre o próprio fazer varia entre o questionamento sobre o impulso de manipular exaustivamente os elementos a sua disposição para a elaboração do filme, e a pouca sensibilidade para perceber sua personagem e dar vazão a sua espontaneidade. E, enquanto testemunha vincula sua vivencia na casa da Gávea à vivência com Santiago. Durante toda sua estadia Santiago esteve lá. As memórias do lugar e da personagem se confundem, e o narrador, que escreve mas não empresta sua voz à narração( quem interpreta o texto que ouvimos é Pedro Salles, seu irmão), revive suas lembranças de juventude relembrando de Santiago. Essas três instâncias presentes no filme: o falar da própria construção, de si e da personagem; ganham força quando quase não distinguimos bem seus contornos. A medida que o filme avança, os comentários do narrador sobre Santiago se voltam também para si. Ao mostrar o filme predileto do mordomo, A Roda da Fortuna, o narrador nos diz que o mostra por representar para si uma metáfora das transformações sutis de sua própria vida. A transformação de ter saído de casa, da casa da Gávea, onde se iniciou o filme e para onde voltamos agora, acompanhados do comentário: gostaria que essa história fosse de meus pais e meus irmãos, Pedro, Walter e Fernando. A memória de Santiago e da casa da Gávea é nossa. Minha mãe morreu alguns anos antes de Santiago. Meu pai morreu poucos anos depois. Meu irmão Fernando escreveu sobre nosso pai: dele, hoje, plantei as cinzas, virando a terra com maus irmãos. Será, um dia, pé de silencio, junto ao rio de minha infância. E ainda: no orvalho do jardim, cresce um Pau Brasil. Pena, eu lá não brinco mais.

João Salles se vale de muitas referencias para construir seu filme, e consegue tecer um quadro reflexivo e autobiográfico bastante complexo. Ao iniciar seu movimento de termino da obra cita Herzog que lhe vale no filme por dizer que “muitas vezes a beleza de um plano está naquilo que é resto. O que acontece fortuitamente antes e depois da ação. São as esperas, os tempos mortos, os momentos em que quase nada acontece”.

Conclusão.

A narração em Santiago está muito distante de cumprir a função que comumente vemos nos documentários expositivos, segundo classificação de Bill Nichols. Aqui não há uma construção retórica de persuasão que se vale das imagens como mecanismo de reforçar ou mesmo comprovar o que nos é dito. Em Santiago a narração é responsável pelo forte teor reflexivo e autobiográfico como é construído o filme. Sem ela dificilmente saberíamos do dilema vivido pelo autor ao tentar concluir sua obra no momento em que ela foi iniciada. Nem de sua relação com a personagem que dá titulo ao filme. Menos ainda sobre seus questionamentos acerca das escolhas de direção que adotou na época e que agora nos revela equivocadas.

A construção do que é mostrado com o que é ouvido não resulta em redundância. Ao menos desnecessária. Os comentários do narrador complementam as aparições da personagem, a envolve de novos significados, de novas possibilidades de leitura, provenientes justamente da perspectiva analítica como se apresenta. E quando, por exemplo, nos mostra trechos das páginas escritas por Santiago ao mesmo tempo em que narra o que está escrito o faz mais para que vejamos a obra tão enigmática de sua personagem, escrita de forma grandiloqüente e obsessivamente organizada, do que para que tenhamos certeza de que diz a verdade. Ao contrario das regularidades encontradas nos modos de representação esquematizados por Nichols, Santiago, é um filme cujo caráter reflexivo e autobiográfico está expresso por um elemento tradicionalmente utilizado pelo modo expositivo. O ato de desnudar a cena, característico do modo reflexivo aqui não parte de uma postura no ato da filmagem que posteriormente será valorizada na edição e montagem do filme. Também não encontramos a presença física do diretor na construção da trama do filme, a partir de alguma proposição ou vivência que o envolva subjetivamente, como mais frequentemente encontramos nos documentários autobiográficos. O traçado de composição de Santiago é bastante específico. Sua motivação inicial, dar um destino a um material filmado há treze anos, poderia ter resultado em filmes muito diversos. Mas tal como apreciamos, o Santiago efetivamente realizado constrói uma transversalidade que envolve o falar da construção do próprio filme, com as muitas implicações que pode ter a feitura de um filme documentário, envolve o falar da personagem que dá titulo a obra, com a mesma reverencia e solenidade com que a personagem cuidava de seu universo particular, alem do falar de si ao se lembrar dos momentos que compartilhou com Santiago, o motivo principal de tudo isso.