sexta-feira, 24 de julho de 2009

Vi uma lesma pregada na existência mais do que na / Pedra. / Fotografei e existência dela.



Esse é um trecho da poesia O FOTÓGRAFO do livro Ensaios Fotográficos de Manoel de Barros. Sua presença aqui se deve ao que já havia me ocorrido quando pensei o tema do post anterior: TransLucidez e Opacidade. E por conta ainda de uma relação um pouco distante, mas possível graças ao livre espaço de escrita que é o blog In Time. Explico.
O subtítulo da crítica de meu amigo Fabão, também conhecido como Fabio Costa, sobre o filme Pierrot Le Fou, de JLGodard é: o mais profundo é a película. Bem sugestivo, não? No texto, ele adentra um pouco no universo criativo do cineasta e nos apresenta sua trajetória, que se inicia com filmes com uma estrutura narrativa, digamos, ainda convencional, para chegar a um modo autoral de composição de filmes que evidencia a superfície da tela, num jogo continuo entre representação e desvelo da linguagem que faz representar.
Fabão cita uma fala do personagem principal do filme, Ferdinand, que diz: “Tenho uma idéia para um livro. Ao invés de ser sobre a vida das pessoas, seria sobre a vida, a vida como uma coisa própria, o que está entre as pessoas, o espaço, som e cores. Isso valeria à pena. Joyce tentou isso, mas deve ser possível fazer melhor”. Foi essa passagem que me remeteu ao poeta de Barros, mas antes vale o registro da aparente contradição: através de seu programa estético Godard leva ao extremo a necessidade de tornar evidente os meios da representação, numa postura de deslocar seu expectador do espaço de apreensão desinteressada da obra cinematográfica. Uma forma talvez de tornar obvio que nosso campo de significação, ou nossa realidade mesma, se dá pela linguagem. A linguagem é a realidade, e verso e versa. Por outro lado expõe através de uma personagem a vontade de expressar a própria vida através da arte, de alcançar algo que nos é fugidio ou inapreensível, justamente por estar alem do que aparentemente a linguagem é capaz de nos oferecer.
Manoel de Barros nos propõe algo assim com suas metáforas, e ao dizer que queria fotografar o silêncio, na mesma poesia do título, me fez lembrar Godard. Os versos são os seguintes:


Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silencio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.

Conversando com Sir Eduardo Saphira sobre o tema do post ele lembrou de outras duas perspectivas de criação cinematográfica que também apontam para posturas diferentes em torno desse valor de velo e revelação. O mar de Fellini em E La Nave Vá é quase uma brincadeira com o pouco que precisamos de elementos para embarcar numa história. E ao mesmo tempo que nos insere numa trama apresentada no limiar da irrealidade, abre o quadro no final do filme a ponto de mostrar a traquitana montada para simular uma Nave. Por outro lado temos o banquete de mendigos no filme Viridiana de Buñuel, que providenciou roupas de mendigos, mendigos mesmo, para vestir seus personagens e dar a cena um forte caráter realista.
A arte chama em causa a materialidade da linguagem, e torna mais visível essa relação. Olha só que passagem interessantíssima do filósofo Luigi Pareyson, ao escrever sobre a Leitura da Obra de Arte: ...não há obra de arte em que não penetre a vida, arrastando os mais diversos valores consigo, e que não reingresse na vida, nela desempenhando as mais diversas funções além da artística, mas, por outro lado, a vida nela penetra precisamente sob forma de arte, e só como arte ela reingressa na vida, vindo ao encontro das mais diversas necessidades. Também a esse respeito não é possível, portanto, separar as duas coisas na leitura, e cair num esteticismo que isola o valor artístico da obra ou num funcionalismo estético que só tende a utilização mediata ou imediata dela.
A obra de Pareyson aponta para a “artisticidade” do fazer em geral e ressalta a arte por ser um processo que age sobre si. O equilíbrio de concepções aparentemente opostas caracteriza seu pensamento. E chamando-o em causa para falar de nossa translucência e opacidade talvez cheguemos a uma síntese desse processo que não exclua nem uma das duas perspectivas, mas que as incorpore numa dinâmica inevitável de nossa relação com o mundo, com a arte e o conhecimento. Isso não significa acomodar as tensões existentes no nosso processo de leitura da obra ou de significação das coisas. A linguagem não é apenas uma ponte que nos possibilita conhecer e comunicar, mas também não é uma criação inteiramente autônoma dos fenômenos externos. Há um campo de retornos entre o mundo e nós, que alterna suas representações, ou melhor, nossas representações. Aí está certamente uma fonte fecunda não apenas da expressão artística, mas do conhecimento. E talvez por isso, expressões distintas de artistas como Caetano e Wally, mesmo que aparentemente opostas, dialoguem diretamente, cumpliciando um plano ulterior do debruçar-se sobre a vida; para entoar uma voz de clareza e opacidade, através da beleza do medo e do encantamento de perceber tanto a superfície quanto a profundidade da matéria que nos forma e nos lança no ar!